2° Domingo da Páscoa ou da Divina Misericórdia

20 abril 2022

Act 5, 12-16;
Sal 117,
2-4.22-27a;
Ap 1,9-11.12-13.17-19;
Jo 20,19-31

COMENTÁRIO BÍBLICO-MISSIONÁRIO

Ressuscitar para a Missão: A Missão do Enviado e dos enviados

«A paz esteja convosco!» Estas são as primeiras palavras de Jesus «na tarde daquele dia, o primeiro da semana». Ele apareceu aos Seus discípulos pela primeira vez no mesmo dia da Ressurreição, como nos diz hoje o Evangelho de João. Também de acordo com a passagem do Evangelho que ouvimos, o Senhor Ressuscitado saudou os Seus discípulos «oito dias depois» com as mesmas palavras, quando lhes apareceu pela segunda vez no mesmo lugar. Esta saudação («A paz esteja convosco!») torna-se assim o sinal característico que, como se vê também nos outros Evangelhos, acomuna as aparições do Senhor Ressuscitado e as une a todas de forma misteriosa e mística num único grande Evento-Mistério Pascal que os primeiros apóstolos experimentaram no período que vai daquele memorável “primeiro dia” até ao regresso definitivo de Jesus ao Pai. Assim, cada aparição se repete, se liga e se completa com as demais. Estes foram os dias intensos em que Cristo ressuscitado comunicou/doou aos Seus discípulos as “primícias” da ressurreição, guiando-os na sua preparação final para a sua missão, e tudo isto pacientemente, especialmente com os cépticos e os “duros de coração”, como os dois discípulos de Emaús ou Tomé chamado Dídimo!

Foi um tempo de intensa “formação missionária” para os primeiros discípulos, e assim é também para nós, Seus discípulos de hoje, chamados a viver sempre mais intensa e profundamente o Mistério Pascal cada dia deste período, particularmente cada domingo, ou seja, cada “oitavo dia”, “o dia do Senhor”. O Tempo Pascal é, assim, ainda mais forte que o da Quaresma, e por isso deve ser vivido na vida e nas celebrações litúrgicas com a enorme riqueza das orações e leituras bíblicas, com as quais Cristo ressuscitado, o Vivente, deseja falar de novo ao coração dos Seus discípulos para os preparar uma vez mais para a missão.

Neste contexto formativo missionário, cada frase e acção do Ressuscitado é de importância fundamental. Deixo de bom grado aos leitores/ouvintes com interesse o aprofundamento de todos os aspectos interessantes das leituras e do Evangelho de hoje, para me deter apenas em três pontos, começando com as palavras e gestos de Jesus na Sua primeira aparição aos discípulos.

1. «A paz esteja convosco!»

É o primeiro dom, aliás o dom supremo, do Ressuscitado que o comunica/transmite com a Sua presença aos Seus discípulos. Embora se assemelhe a uma saudação comum para aquela cultura, este é na verdade o anúncio do cumprimento da missão, aclamada durante a Sua entrada solene em Jerusalém antes da Paixão (que celebrámos e meditámos no Domingo de Ramos). Onde quer que esteja o Ressuscitado, reina a Sua paz, aquele shalom, dom do Messias que indica a vida com e em Deus, a fonte de toda a felicidade, bem-estar e alegria. Agora tudo está verdadeiramente realizado com e na presença de Cristo, que de resto tinha confiado aos Seus discípulos como testamento durante a Última Ceia antes da Sua Paixão e morte: «Deixo-vos a paz, dou-vos a Minha paz; Eu não vo-la dou como a dá o mundo. Não se perturbe o vosso coração, nem se atemorize» (Jo 14,27). Assim, agora, aos Seus discípulos reunidos à porta fechada «por medo dos judeus», como sublinhado na passagem do Evangelho, Jesus reitera o dom: «A paz esteja convosco», para que «não se perturbe o vosso coração, nem se atemorize.» A paz messiânica começa com a paz interior do coração que o Ressuscitado dá agora aos Seus discípulos, para que eles a possam transmitir aos outros.

Nesta perspectiva de realização, não é por acaso que, logo após o dom da paz, o Ressuscitado mostra aos discípulos os sinais da Paixão: «Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.» Isto parece sugerir que estas feridas de Jesus não são apenas provas para reconhecer a Sua identidade, mas também uma indicação ou demonstração dos “meios”, ou melhor, do “preço” pelo qual Ele “comprou” a paz para a dar agora aos Seus. «Nas Suas chagas fomos curados» (Is 53,5), e encontramos a paz em Deus. São sinais da missão messiânica cumprida em amor e fidelidade, e assim permanecerão por toda a eternidade, de acordo com a sabedoria de Deus, no Seu corpo glorioso. Eles são para sempre sinais do Amor e da Misericórdia divina em missão!

Que o dom da paz do Senhor Ressuscitado seja fundamental para a missão, vemo-lo precisamente pelo facto de Cristo ter repetido este Seu desejo antes do anúncio do envio dos Seus discípulos: «A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós.» Mesmo aqui vemos que a saudação de paz não é apenas uma saudação inicial: o mandato missionário vem após o dom da paz. Para cada discípulo, portanto, será sempre útil, e mesmo necessário, acolher a paz do Ressuscitado como um dom de comunhão com Ele, e viver com e nela, para realizar a missão por Ele confiada. Esta paz do Ressuscitado será para o discípulo missionário a força interior nas fraquezas humanas e nas adversidades. Aliás, o relançamento da missão parte do regresso à paz e à comunhão íntima com o Senhor. O que foi dito parece banal e óbvio, mas é muito importante não o negligenciar ou subestimar, especialmente face ao ritmo frenético da vida moderna e das perseguições. É especialmente importante neste Tempo Pascal, quando o Senhor Ressuscitado quer uma vez mais comunicar a Sua paz a todos os Seus discípulos, juntamente com os outros dons da Sua ressurreição.

2. «... Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós»

Ao dar a Sua paz, o Ressuscitado declara solenemente o mandato missionário aos Seus discípulos com uma afirmação teologicamente profunda: «Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós.» Por um lado, emerge aqui claramente a bela corrente da missão: Pai–Filho–discípulos. A missão dos discípulos continua, portanto, a do Filho e reflecte-a. Tanto é assim que, como ouvimos na primeira leitura dos Actos dos Apóstolos, as actividades de Pedro e a reacção do povo são descritas tal como as de Jesus nos Evangelhos: «de tal maneira que traziam os doentes para as ruas e colocavam-nos em enxergas e em catres, para que, à passagem de Pedro, ao menos a sua sombra cobrisse alguns deles. Das cidades vizinhas de Jerusalém, a multidão também acorria, trazendo enfermos e atormentados por espíritos impuros, e todos eram curados» (Act 5,15-16).

Por outro lado, as palavras “como... (assim) também” destacam uma comparação estonteante: a missão divina que Cristo realizou passa agora aos discípulos que serão os enviados plenipotenciários do Filho, tal como o Filho foi o enviado exclusivo a quem o Pai “marcou com o selo” (cf. Jo 6, 27; 1,18). O envio dos apóstolos por Cristo ressuscitado encontra o seu modelo e razão de ser no envio do Filho pelo Pai: este é um pensamento original do Evangelho de João, como observou com competente autoridade o exegeta R. Brown. Tal como o Filho é o rosto e a imagem do Pai, assim também os Seus discípulos missionários representam agora, ou melhor, retratam, o Filho que os envia. Por esta razão, o próprio Jesus tinha declarado solenemente aos discípulos no Seu discurso de despedida durante a Última Ceia: «Amén, amén vos digo: quem recebe aquele que Eu enviar, a Mim recebe; e quem Me recebe, recebe aquele que Me enviou» (Jo 13,20).

Este é um ponto fundamental da shaliah (lei do envio) hebraica, segundo a qual o enviado tem todo o “poder” de quem o enviou, porque o enviado e quem o envia são uma única realidade jurídica, que no caso de Jesus também se realiza a nível existencial: «Eu e o Pai somos um» (Jo 10,30). Portanto, realizando a missão que Lhe foi confiada pelo Pai, Jesus anuncia: «E quem me vê, vê aquele que Me enviou. (...) Eu não falei por Mim mesmo; mas o Pai que Me enviou, foi Ele que Me deu um mandamento acerca do que havia de dizer e falar» (Jo 12,45.49).

Assim, agora, o que foi dito sobre a união fiel de Cristo com o Pai que O enviou será a medida última para cada discípulo missionário. Por outras palavras, os discípulos agora enviados por Jesus terão de garantir que todos possam ver Jesus neles, como assinalou o grande exegeta R. Brown. Eles terão de transmitir fielmente aos outros todas as palavras do Mestre, para que todos possam ouvir e experimentar nelas o próprio Jesus. Eis a essência altíssima da vocação de cada discípulo missionário de Cristo, chamado a ser um reflexo fiel de Cristo no mundo, aliás um Cristo redivivo, um alter Christus, segundo a expressão mística e inspirada do Apóstolo São Paulo: «Com Cristo estou crucificado. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 2,19b-20a). E o que São Paulo descreve como um modo de vida para os apóstolos-enviados da sua geração será a tarefa principal de cada discípulo missionário de todas as épocas: «carregando sempre no corpo a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste no nosso corpo» (2 Cor 4,10). A maior honra que os discípulos enviados por Jesus têm é poder manifestá-l’O, tal como Ele, enviado pelo Pai, deu a conhecer o Pai.

3. Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo!»

Como sugerido pelo contexto e pela frase de conjunção (“Dito isto”), a proclamação de envio dos discípulos está intrinsecamente ligada à acção de Jesus de soprar sobre eles, doando-lhes o Espírito Santo, que é assim o Espírito do Ressuscitado, o próprio Espírito de Jesus. Testemunhamos aqui a cena, a que alguns estudiosos chamam o “Pentecostes Joanino”, que marca a efusão do Espírito Santo sobre os discípulos. Este “Pentecostes” no Evangelho de João recorda e está ligado ao descrito nos Actos dos Apóstolos, que, no entanto, tem lugar cinquenta dias após a Páscoa. Também aqui, tal como na Ressurreição e nas aparições do Ressuscitado, estamos a lidar com as várias manifestações de um único “Mistério divino, que como tal permanece sempre elusivo para a mente humana”, como mencionado no comentário anterior. Sem entrarmos demasiado em considerações exegético-teológicas sobre o assunto, debruçamo-nos apenas sobre alguns aspectos mais importantes no plano espiritual.

Apesar da diferença temporal devida às diferentes abordagens de cada um dos autores sagrados, os dois acontecimentos sublinham na realidade uma única verdade teológica fundamental: o Espírito Santo é o dom do Ressuscitado aos Seus discípulos por Ele enviados ao mundo. O que é descrito aqui no “Pentecostes Joanino” reflecte efectivamente o conteúdo da proclamação de Cristo aos discípulos antes de subir ao Pai nos Actos dos Apóstolos: «Descerá sobre vós o Espírito Santo e vos dará força; e sereis Minhas testemunhas (...) até aos confins do mundo» (Act 1,8). E este anúncio cumpre-se no Pentecostes. (Num aparte, recomendo vivamente a leitura da Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial das Missões deste ano 2022, que reflecte precisamente sobre a frase citada de Act 1,8).

Na sua sensibilidade teológico-espiritual, São João Evangelista coloca a efusão do Espírito Santo logo no primeiro dia da ressurreição para exaltar a importância do acontecimento e do dom, bem como para realçar mais fortemente a ligação intrínseca entre a ressurreição de Cristo e o dom do Espírito, entre o Cristo ressuscitado e o Espírito dado aos discípulos enviados por Cristo em missão. Além disso, o acto de Jesus de soprar o Seu hálito sobre os discípulos recorda o de Deus na criação do primeiro homem, moldado a partir da terra (cf. Gn 2,7: O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem tornou-se um ser vivente). Temos, portanto, aqui com o Ressuscitado a cena da nova criação do homem ou da criação do homem novo. Os discípulos tornam-se homens novos que levam consigo o Espírito do Ressuscitado para o partilhar com os outros, tornando-os assim novos no Espírito que purifica dos pecados. É por isso que aqui, no “Pentecostes” Joanino, o Ressuscitado liga o dom do Espírito com o poder de perdoar os pecados: «Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos.» A formulação positiva e negativa expressa o carácter exclusivo da remissão dos pecados no Espírito agora confiada aos discípulos, chamados a levar a cabo a missão – a missão da misericórdia divina – tal como Cristo. Tudo isto alude à realidade do baptismo na água e no Espírito para a remissão dos pecados. Esta mensagem evangélica, por conseguinte, parece inteiramente apropriada para celebrar seja o Domingo da Misericórdia Divina, seja o mais tradicional da Domenica in albis (“Domingo em branco [vestidos]” para os recém-baptizados na Páscoa, para assinalar o culminar de uma semana de acção de graças pela graça do Baptismo recebido.

Sublinha-se, por fim, o cumprimento das promessas de Cristo aos discípulos antes da Paixão a respeito do Espírito Santo e da missão dos discípulos. O Espírito é dado aos discípulos precisamente para lhes permitir continuar a missão de Jesus e como Jesus. Trata-se do que Jesus disse durante a Última Ceia: «Não fostes vós que Me escolhestes, mas fui Eu que vos escolhi e vos designei, para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça» (Jo 15,16). Esta “constituição” apostólico-missionária é realizada com e no Espírito que Jesus comunica aos discípulos após a ressurreição. Por conseguinte, é importante para nós, os discípulos missionários de hoje, deixar que o Ressuscitado sopre misticamente sobre nós o Seu Espírito neste Tempo Pascal, em que se actua para nós o Mistério da Ressurreição de Cristo. Ouçamos de novo as palavras fundamentais do Papa Francisco na Mensagem para o Dia Mundial das Missões de 2022 acima mencionada:

Como «ninguém pode dizer: “Jesus é Senhor” senão pelo Espírito Santo» (1 Cor 12,3), também nenhum cristão poderá dar testemunho pleno e genuíno de Cristo Senhor sem a inspiração e a ajuda do Espírito. Por isso cada discípulo missionário de Cristo é chamado a reconhecer a importância fundamental da acção do Espírito, a viver com Ele no dia a dia e a receber constantemente força e inspiração d’Ele. Mais, precisamente quando nos sentirmos cansados, desmotivados, perdidos, lembremo-nos de recorrer ao Espírito Santo na oração (esta – permiti-me destacá-lo mais uma vez – tem um papel fundamental na vida missionária), para nos deixarmos restaurar e fortalecer por Ele, fonte divina inesgotável de novas energias e da alegria de partilhar com os outros a vida de Cristo.