4° Domingo da Quaresma (Ano C)

25 marzo 2022

São Ruperto, bispo; Beato Eugénio Maria do Menino Jesus, sacerdote da Ordem dos Carmelitas Descalços, fundador

Jos 5,9a.10-12;
Sal 33;
2 Cor 5,17-21;
Lc 15,1-3.11-32

Saboreai e vede como o Senhor é bom

COMENTÁRIO BÍBLICO-MISSIONÁRIO

O regresso à alegria do Pai

«O Quarto Domingo da Quaresma é inundado de luz, uma luz realçada neste domingo “Laetare” [da alegria] pelos paramentos litúrgicos de um tom mais claro e pelas flores que adornam a igreja» (Directório Homilético, 73). Neste contexto de alegria pela “Páscoa que está agora próxima”, regozijamo-nos ao ouvir de novo a famosa parábola, conhecida como a parábola do filho pródigo ou também do pai misericordioso. É verdadeiramente uma jóia da narrativa evangélica, que por si só, como me disse um pregador, causou mais conversões do que todos os outros discursos sobre o assunto. O risco, porém, é o seguinte: estarmos tão habituados ao enredo da história, ao ponto de, assim que se ouve a frase inicial da parábola «Um homem tinha dois filhos», já sabemos como termina e, portanto, “desligamos” a atenção e esperamos impacientes pelo fim da proclamação do Evangelho!

Pois bem, cada palavra de Deus que é proclamada nunca é uma letra morta mas uma mensagem sempre nova, porque provém do Deus vivo que continua a falar ao coração dos fiéis que o ouvem com fé, docilidade e uma dose de curiosidade saudável para compreender melhor os aspectos que (quase) nunca são considerados. Podemos sempre aprender algo de novo com esta parábola, se examinarmos mais cuidadosamente o seu rico conteúdo. Para despertar alguma curiosidade, pergunto: se «Um homem tinha dois filhos. (...) O pai repartiu os bens entre eles», quanto é que terá recebido o filho mais novo? Poder-se-ia pensar que cada um deles terá recebido metade dos bens do pai, mas talvez não tenha sido esse o caso. Na lei judaica, nessa situação, o filho mais velho recebia dois terços pela sua progenitura (cf. Dt 21,17), enquanto o filho mais novo recebia apenas um terço! Este detalhe, agora mencionado, pode encorajar-nos a reflectir novamente hoje sobre a nossa bastante meditada parábola, para descobrir algumas nuances novas sobre os três protagonistas da história; que nos será certamente útil na nossa caminhada de conversão quaresmal deste ano.

1. O arrependimento do filho mais novo

O regresso do filho mais novo ao pai, após uma vida de esbanjamento e dissipação, longe da casa paterna (a distância é realçada pela menção dos “porcos” no local onde se encontrava o filho pródigo: ele estava distante tanto geográfica como espiritualmente da terra de Israel, porque os suínos, considerados animais impuros, não “circulavam” nas famílias judaicas; isto realça ainda mais a humilhação que o filho mais novo teve de suportar, ao ponto de negar a tradição dos seus pais ao estar com os porcos). É, portanto, edificante e encorajador para muitos ouvintes da parábola que façam a mesma viagem de duplo regresso, por muito longe que estejam. São convidados primeiro a um “regresso a si mesmos” e depois a um regresso efectivo a Deus com a humilde confissão dos pecados cometidos: «Pequei.»

Todavia, a narrativa indica subtilmente que esse arrependimento não foi fruto do seu amor ao Pai, mas simplesmente porque tinha fome, como ele próprio admitiu: «eu aqui morro de fome!» Sim, demasiado banal, pouco poético, mas é cruelmente assim. O regresso do filho mais novo é ditado não pelo sentimento do coração, mas pelo estômago vazio! É a crua realidade, e não queremos fazer qualquer juízo apressado sobre o assunto. Isso é aceitável! Aliás, por vezes na vida, o Céu, ou seja, o Deus misericordioso e compassivo, deixa os Seus filhos pródigos experimentarem essa fome física para que repensem a sua vida. Deixa-os tocar o fundo da sua própria auto-infligida miséria, dado que por vezes essa é a única forma de começarem a pensar no essencial. Efectivamente, já ouvi alguém dizer-me: “Se eu não tivesse encontrado essa situação crítica de fracasso total, talvez nunca me teria convertido a Deus para viver feliz com Ele e na Sua paz.” Portanto, devemos sempre agradecer ao Céu mesmo por cada “fome” que sentimos (como a da parábola). Nunca será uma tragédia a suportar, mas sempre uma oportunidade a explorar. Ajudai-nos, Senhor e Pai Santo, a sentir o Teu chamamento para voltarmos a Ti, especialmente quando não temos nada no nosso estômago!

Estranhamente, a confissão dos pecados do filho mais novo parece ser uma declaração “pré-cofeccionada”, para não dizer “calculada”, sem muito sentimento. Memorizou a “fórmula” e repetiu-a palavra por palavra ao encontrar o pai: «Pai, pequei contra o Céu e para contigo; Já não mereço ser chamado teu filho.» É curioso notar, contudo, que no encontro com o pai, o filho mais novo não conseguiu terminar o discurso que tinha preparado com o pedido final: «Trata-me como um dos teus trabalhadores.» O pai, de facto, logo o acolheu, ou melhor, absolveu, e restaurou a sua dignidade filial com uma túnica, um anel, e sandálias, sem que ele pedisse nada. O arrependimento do filho, mesmo que mínimo (talvez muito próximo de zero ou, em qualquer caso, longe da perfeição), encontrou no entanto uma resposta inesperada e generosa do pai que, ao ver o seu filho regressar de longe, «se encheu de compaixão e correu a lançar-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos.»

Que cena emocionante e comovente! Parece que vejo a imagem do encontro místico entre o penitente e o misericordioso Pai celeste no sacramento da confissão. É assim que o coração amoroso de Deus saúda o regresso de um dos Seus filhos mais novos. E é também assim, com o arrependimento do penitente, o qual repete a “fórmula” de contrição quase sem coração. Um arrependimento imperfeito que é feito não por amor a Deus, mas por hábito, por causas secundárias, como a fome ou o medo do castigo. O arrependimento do filho mais novo não está certamente no centro da parábola, mas sim a generosidade do pai que só quer “ver” a presença do filho para o abraçar com um coração cheio de amor, sem julgar se ele voltou com um coração sincero, ou se ele se arrependeu verdadeiramente!

2. O amor misericordioso do pai

O amor generoso e incondicional do pai pelo seu filho pródigo emerge não só no momento do seu encontro, mas também antes. O texto bíblico sublinha: «Ainda [o filho mais novo] estava longe, quando o pai o viu: encheu-se de compaixão...» Como é que o pai conseguiu vislumbrar o seu filho ao longe naquele preciso dia e àquela hora? Foi puro acaso? Nesse dia ou nessa tarde, o pai estaria cansado e saiu para o jardim em frente da casa para descansar, e daí viu o seu filho regressar? Ou talvez seja mais provável que desde que o filho tinha partido, o pai saía de casa todos os dias e, olhando constantemente na direcção em que o filho tinha ido, esperou pacientemente pelo seu regresso. Por isso, quando o filho regressou, o pai viu-o imediatamente, porque ele esperou todos os dias por aquele momento. Parece-me, portanto, que o amor misericordioso do pai se exprime não só nos actos de compaixão e acolhimento no momento em que encontra o filho, mas também e sobretudo na paciente espera pelo seu regresso. Aqui penso na espera de Deus na pessoa do padre que, por vezes, espera horas e horas no confessionário sem qualquer penitente, mas precisamente no acto de esperar pacientemente por algum “filho pródigo”, o confessor já faz o seu “trabalho”. Esta é a missão dos missionários de Cristo que são justamente missionários da misericórdia. Se não for hoje, talvez venha amanhã; ou, talvez depois de amanhã. Um dia, seguramente, voltará!

Voltando à parábola, a misericórdia do pai foi visível não só com o filho mais novo, mas também com o filho mais velho. O filho mais velho, ironicamente, também “regressou” dos campos, mas «quando regressou, ao aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças. Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que era aquilo.» É de notar um detalhe estranho: o filho mais velho não quis entrar em sua casa quando ouviu “a música e as danças”, mas chamou um criado para descobrir o que tinha acontecido. Muito provavelmente, conhecendo o pai, ele já tinha intuido algo sobre o regresso do seu irmão. De facto, após ter sido informado, «Ele ficou ressentido e não queria entrar.» E foi precisamente aqui que o pai mostrou todo o seu amor paciente por este filho mais velho que agora se tornou, de facto, o rebelde: «Então o pai veio cá fora instar com ele». Esta é uma acção muito invulgar na cultura patriarcal judaica e geralmente asiática (como a minha vietnamita), onde o pai manda, e nunca implora aos filhos. Além disso, após o desabafo do filho mais velho, que chama o seu irmão, de modo pejorativo, “esse teu filho”, o pai não se zanga (e não o repreende dizendo “Então é assim que respondes ao teu pai?”). Além disso, o pai continua a chamar “filho” a este seu filho rebelde e explica-lhe pacientemente a razão da festa. Aliás, ao filho mais velho que recebeu dois terços da sua herança, o pai reitera a sua generosidade em dar-lhe tudo: «tu estás sempre comigo e tudo o que é meu é teu». Eis a misericórdia do Pai, lento a irar-se e grande no amor; Ele não tem em conta as ofensas que lhe são causadas e mantém sempre o Seu coração aberto mesmo àqueles que, embora próximos d’Ele, por vezes O fazem sofrer mais do que aqueles que estão longe! Este é o drama do Pai celeste, que nunca perde a paciência enquanto espera pelo regresso dos Seus filhos, afastados e próximos. Recordemo-nos da bela observação do Papa Francisco: «Deus nunca Se cansa de nos perdoar, (...) mas nós às vezes cansamo-nos de pedir perdão», ao voltar a Ele. (Angelus, Praça de São Pedro, Domingo, 17 de Março de 2013).

3. O filho mais velho e um possível “regresso” à casa do pai

Tal como a parábola da figueira estéril ouvida no domingo passado, a parábola de hoje também tem um final aberto. Após a resposta do pai com o convite a regozijar-se por “este teu irmão”, não se sabe qual será a reacção do filho mais velho. Irá ele ou não regressar a casa: essa é agora a questão! Assim, cada ouvinte da história com as suas próprias acções decidirá pelo filho mais velho. Este é o convite subtil mas urgente que Jesus fez através deste final da parábola a todos os Seus interlocutores directos. Que eram «os fariseus e os escribas murmuravam entre si, dizendo: “Este homem acolhe os pecadores e come com eles”»; por isso, como assinala São Lucas Evangelista, «Jesus disse-lhes então a seguinte parábola.» Ora, aqui mesmo, para reentrar na casa do Pai como o filho mais novo, é necessária uma mudança de mentalidade, um ir além dos padrões habituais de pensamento, efectivamente, uma conversão evangélica!

Entre os fariseus e os escribas que então ouviam Jesus, não sabemos quantos acolheram realmente o Seu convite a regressar. No entanto, cada um de nós que escuta hoje esta parábola é chamado a fazê-lo agora, sempre cientes de um Pai amoroso e compassivo que aguarda pacientemente o regresso de cada um dos Seus filhos, de longe e de perto.

 

Citações úteis:

Papa Francisco, Angelus, (Praça São Pedro, IV Domingo de Quaresma, 6 de março de 2016):

Dentro do percurso quaresmal, o Evangelho apresenta-nos precisamente esta última parábola do pai misericordioso, que tem por protagonista um pai com os seus dois filhos. A narração faz-nos compreender algumas caraterísticas deste pai: é um homem sempre disposto a perdoar e que espera contra qualquer esperança. Antes de tudo faz admirar a sua tolerância face à decisão do filho mais jovem de ir embora de casa: teria podido opor-se, sabendo que era muito imaturo, um jovem, ou procurar algum advogado para não lhe dar a herança, estando ainda vivo. Ao contrário, permite que ele parta, mesmo prevendo os riscos possíveis. Assim age Deus connosco: deixa-nos livres, até de errar, porque ao criar-nos concedeu-nos o grande dom da liberdade. Compete a nós fazer dela um bom uso. Este dom da liberdade que Deus nos concede surpreende-me sempre.

Mas o afastamento daquele filho é só físico; o pai leva-o sempre no coração; espera confiante o seu regresso; perscruta a estrada na esperança de o ver. E um dia o vê comparecer ao longe (cf. v. 20). Mas isto significa que este pai, todos os dias, subia ao terraço para ver se o filho voltava! Então comove-se ao vê-lo, corre ao seu encontro, abraça-o e beija-o. Quanta ternura! E este filho tinha-se comportado muito mal. Mas o pai recebe-o assim.

Papa Francisco, Audiência geral, (Quarta-feira, 11 de Maio de 2016):

Também o filho mais velho precisa de misericórdia. Inclusive os justos, aqueles que se julgam justos, têm necessidade de misericórdia. Este filho representa cada um de nós, quando nos perguntamos se vale a pena labutar tanto, se depois nada recebemos em troca. Jesus recorda-nos que não permanecemos na casa do Pai para receber uma recompensa, mas porque temos a dignidade de filhos corresponsáveis. Não se trata de «negociar» com Deus, mas de seguir Jesus que se entregou incondicionalmente na cruz.

«Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Convinha, porém, fazer festa...» (vv. 31-32). Assim diz o Pai ao filho mais velho. A sua lógica é a da misericórdia! O filho mais jovem pensava que merecia um castigo por causa dos seus pecados, e o filho mais velho esperava uma recompensa pelos seus serviços. Os dois irmãos não falam entre si, vivem histórias diferentes, mas ambos raciocinam segundo uma lógica alheia a Jesus: se fizeres o bem, receberás uma recompensa, se fizerem o mal serás punido; esta não é a lógica de Jesus, não! Esta lógica é invertida pelas palavras do pai: «Convinha, porém, fazer festa, pois este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado» (v. 31). O pai recuperou o filho perdido e agora pode inclusive restituí-lo ao seu irmão! Sem o filho mais jovem, também o filho mais velho deixa de ser um «irmão». A maior alegria para o pai é ver que os seus filhos se reconheçam irmãos.