
5° Domingo da Páscoa (Ano A)
Act 6, 1-7;
Sal 32;
1 Pd 2, 4-9;
Jo 14, 1-12
Esperamos, Senhor, na Vossa misericórdia
COMENTÁRIO BÍBLICO-MISSIONÁRIO
O ponto culminante da manifestação de Cristo
O Evangelho deste Quinto Domingo da Páscoa oferece-nos os pontos mais importantes do pensamento teológico e cristológico do Quarto Evangelho e do Novo Testamento. No contexto místico da Última Ceia, antes da Paixão, e no Discurso de Despedida de Jesus aos Seus discípulos íntimos, Ele revela-Se como “caminho, verdade e vida” e como imagem do Deus invisível. Esta dupla auto-revelação, “estonteante” no seu conteúdo, exige de todos os fiéis discípulos de Cristo, então como agora, uma escuta séria e uma reflexão constante para crescerem cada vez mais na fé e no conhecimento da identidade e da missão do Seu divino Mestre. Estas poucas linhas de comentário que se seguem pretendem propor apenas algumas pistas para uma meditação adicional sobre estes profundos pronunciamentos de Cristo que hoje escutámos. (Cf. D.A.N. Nguyen, “Gesù via-verità-vita e la missione in Gv 14,1-14: Rilettura esegetico-teologica per una spiritualità missionaria ‘sapienziale’ in un contesto asiatico”, in T. Longhitano [ed.], Spiritualità missionaria [Quaderni ISCSM], Urbaniana University Press, Vatican, 2019, 47-100).
1. «Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por Mim»: A auto-revelação da identidade e da missão de Jesus em Jo 14, 4-6
A mencionada afirmação de Jesus faz parte do conjunto de sete auto-revelações cristológicas (“Eu sou”) com predicado nominal no Quarto Evangelho, nas quais Jesus aplica a Si mesmo conceitos ou imagens conhecidas na tradição judaica (cf. Jo 6, 35: pão da vida; 8, 12: luz do mundo; 10, 7.9: porta das ovelhas; 10, 11.14: bom pastor; 11, 25: ressurreição e vida; 14, 6: caminho-verdade-vida; 15, 1.5: videira verdadeira). Precisamente neste contexto literário, é possível constatar que, por um lado, a afirmação «Eu sou o caminho, a verdade e a vida» de Jo 14, 6a resume efectivamente os atributos de Jesus mencionados nas outras autodeclarações e, por outro lado, resulta evidente a singularidade formal da frase em questão. Com efeito, ela é a única a incluir três predicados, todos com o artigo determinativo, o que de algum modo indica o carácter concreto e singular do substantivo: o caminho, a verdade, a vida.
A propósito desta afirmação, deve mencionar-se a sua estrutura poética com o “quiasmo temático” (ABB’A’), como no esquema seguinte: (A) “Eu sou” (B) “o caminho...” (B’) “Ninguém vai...” (A’) “senão por Mim”. É clara então a tónica no “caminho (para o Pai)” e na pessoa de Jesus (“Eu” – “por Mim”). Ele declara que é o “único caminho” que conduz ao Pai, e isto não se aplica apenas a Tomé ou ao pequeno grupo dos Seus, mas a todos os homens, como sugere o uso de “nenhum” como absoluto e totalizante. A explicação centra-se, pois, inteiramente no caminho.
Graças à observação um pouco “banal” de Tomé («Senhor, não sabemos para onde vais: como podemos conhecer o caminho?»), Jesus declara que é o único caminho, o único verdadeiro, para o Pai, isto é, para a vida. Esta é, portanto, a missão da Sua existência. Aliás, toda a pessoa de Jesus Se torna o ponto de referência obrigatório e necessário para aqueles que querem chegar a Deus Pai, à verdade n’Ele e à vida com Ele. A este respeito, vale a pena notar o contexto cristológico da secção de Jo 13-17, na qual se repetem os seguintes títulos para Jesus: Senhor, Mestre, Enviado, Filho do Homem, Cristo, o Filho. (Este último, embora recorra apenas em Jo 17, 1.12, é a imagem frequente implícita nas frases nas quais Jesus alude ao Pai). Além disso, Jo 13 parece preparar o terreno para a revelação de Jesus como caminho para a vida, através da ênfase na figura de Jesus como “mestre e senhor” que, durante o lava-pés, deixou aos apóstolos um exemplo de como se devem comportar uns com os outros. Assim, “o caminho” segundo Jesus, é o caminho de Jesus.
Então, a afirmação de Jo 14, 6b (só se vai ao Pai através de Jesus) sublinha como condição indispensável para chegar ao Pai não só a fé em Jesus como Filho único e Senhor, mas também a observância dos Seus mandamentos, do Seu exemplo de vida, ou seja, seguir Jesus no Seu caminho que conduz à vida com Deus, de quem Ele saiu/desceu. A imagem de Cristo como “caminho” é dupla: ontológica (Cristo em si mesmo) e funcional/soteriológica (Cristo para nós), em conformidade com as outras passagens joaninas que empregam a imagem do caminho (cf. Jo 8, 12; 10,9; também 1, 51).
2. «Quem Me viu, viu o Pai»: a revelação estonteante da mútua imanência entre Jesus e o Pai
Depois da revelação de Jesus como “o caminho, a verdade e a vida”, chegamos à declaração misteriosa e provocadora de Jesus aos discípulos: «Se Me conhecêsseis, conheceríeis também o Meu Pai. Mas desde agora já O conheceis e já O vistes.» Esta afirmação remete para o que já foi dito na conclusão do prólogo do Evangelho de João: «A Deus jamais alguém viu: o unigénito divino, que está no seio do Pai, Ele O deu a conhecer» (Jo 1, 18).
Na tradição judaica, ver Deus e permanecer vivo é impossível para o homem (cf. Ex 33, 20), mas representa também o seu sonho mais alto, porque é a vida em plenitude. Por isso, a resposta de Filipe a Jesus no v. 8 («mostra-nos o Pai e isto nos basta») é apenas aparentemente deslocada. De facto, parece que o apóstolo não tinha compreendido a importância da afirmação de Jesus de que eles tinham visto Deus. Além disso, este mal-entendido, típico dos diálogos joaninos, faz eco do desejo mais profundo do homem de ver Deus como a plenitude da felicidade (“e isto nos basta!”). Foi Moisés que fez um pedido semelhante a Deus (YHWH), e depois teve de se contentar com uma visão apenas do ombro de Deus e não do Seu rosto (cf. Ex 33, 18.23). Por outro lado, as palavras “ingénuas” de Filipe preparam o terreno para a revelação ulterior de Jesus que, no meio de duas interrogações-repreensões no v. 9, declara uma outra verdade vertiginosamente elevada: «Quem Me vê, vê o Pai.» E esta declaração será explicada e completada por outra ainda mais forte, repetida duas vezes nos vv. 10.11: «Eu estou no Pai, e o Pai está em Mim.» Com uma linguagem tão concreta, a revelação aqui talvez vá muito além de uma simples aplicação do conhecido princípio missionário judaico da igualdade “jurídico-legal” entre aquele que envia e aquele que é enviado, afirmado aliás pelo próprio Jesus em Jo 12, 45: «E quem Me vê, vê aquele que Me enviou.» Diz respeito directamente à “comunhão” (koinonia) íntima entre Jesus e Deus Pai, ou, como a definem os estudiosos, à mútua imanência entre o Filho e o Pai e à Sua perfeita unidade, insistentemente sugerida mais tarde (cf. 14, 20a; 17, 21.23). Ela já tinha sido anunciada por Jesus com a mesma formulação em 10, 37-38, onde Ele também declarou que era um com o Pai (cf. 10, 30; 17, 22). Além disso, nessa ocasião, menciona-se a necessidade de acreditar em Jesus ou, pelo menos, de acreditar n’Ele por causa das obras que o Pai realiza em Jesus, Seu enviado.
O pensamento de Jo 14, 10-11 – particularmente a revelação da mútua imanência entre Jesus e o Pai – mostra-se não acidental, mas bem fundamentado e enraizado na teologia e na cristologia joaninas. Além disso, é ainda afirmada a característica fundamental da missão de Jesus, que consiste simplesmente em “deixar” que Deus Pai fale e actue n’Ele (v. 10b). Trata-se, evidentemente, de um “deixar” activo no sentido de um “fazer”, de uma colaboração criativa em absoluta obediência à vontade do Pai, como o próprio Jesus declarou solenemente várias vezes em São João, particularmente no discurso do pão da vida: «desci do céu não para fazer a Minha vontade, mas a vontade daquele que Me enviou» (Jo 6, 38; cf. 4, 34; 5, 30).
3. «Em verdade, em verdade vos digo: quem acredita em Mim fará também as obras que Eu faço
e fará obras ainda maiores, porque Eu vou para o Pai»
Com o duplo «Em verdade, em verdade» (lit. Amén, amén) inicial, característico do falar de Jesus, a frase acima encerra solenemente o discurso e relembra o que foi mencionado ao início: a crença em Jesus e a Sua partida para o Pai. Estes dois temas, porém, não se repetem apenas para encerrar, mas abrem um novo horizonte, segundo a dinâmica joanina, em “espiral”. Em ligação também com a anterior menção das obras do Pai/Filho (vv. 10.11), Jesus anuncia com certeza que o crente fará as mesmas obras de Jesus, ou ainda maiores. Estamos de novo diante de algo de grandioso, também e sobretudo do ponto de vista da missão.
Para além de um forte universalismo da frase, que se aplica a todos os que acreditam, e não apenas ao grupo dos Doze, a tónica é colocada em “obras ainda maiores” do que as de Jesus. Quais são elas e como explicá-las? Antes de mais, é preciso esclarecer o uso do termo grego original para “obras”. Parece indicar que não se trata aqui exclusivamente de milagres, para os quais se usaria a palavra joanina “sinais”; as “obras” aqui estão ligadas às de Jesus, que incluem também as Suas “palavras” para dar testemunho do Pai (cf. Jo 14, 10a; 15, 22.24). Refere-se, portanto, a todas as actividades da vida, isto é, palavras e obras, em continuidade com as iniciadas por Jesus na Sua missão terrena. Obviamente, à luz da narração joanina sobre Jesus que realiza “as obras” que Lhe foram confiadas pelo Pai (cf. 5, 36; 10, 25), tais obras incluem prodígios, que, no entanto, não constituem o aspecto principal, que consiste em dar vida ao mundo. E uma vez que a menção das obras de Jesus em São João indica frequentemente a Sua unidade como enviado com o Pai, já se pode pressentir, no uso do termo em questão, alguma alusão à união entre os discípulos e Jesus na realização das obras. A mencionada união entre Jesus e os discípulos explica, efectivamente, porque é que os discípulos serão capazes de fazer obras ainda maiores do que as do Seu mestre.
Como salienta o exegeta Beasley-Murray, a expressão “obras ainda maiores” tem o seu paralelo em Jo 5, 20, onde Jesus declara ao povo, de forma misteriosa, que, no Seu amor pelo filho, o Pai «mostra-Lhe tudo o que Ele próprio faz. E há-de mostrar-Lhe obras ainda maiores do que estas, para que vós fiqueis admirados!» O contexto da frase indica que essas obras ainda maiores se referem às manifestações da ressurreição e do juízo que o Pai realizará no Filho para dar vida aos que crêem (cf. Jo 5, 21-25). Esta perspectiva enquadra-se bem na motivação que aparece no final de Jo 14, 12 sobre a possibilidade de fazer obras maiores: porque Jesus vai para o Pai. O regresso ao Pai é precisamente o processo da morte e ressurreição de Jesus, que, nos efeitos e consequências, inundará finalmente toda a humanidade com a graça da vida eterna.
As obras maiores são apenas as realizações concretas desta vida nova, os frutos da morte redentora de Jesus. Todos os que acreditam em Jesus poderão realizá-las, porque na realidade é Jesus glorificado que as realiza, ou melhor, é o Pai que as realiza no Filho glorificado. Assim, torna-se claro que fazer obras maiores do que as de Jesus só é possível graças a Ele, na fé n’Ele e em estreita comunhão com Ele, como Ele mesmo afirma em Jo 15, 5: «sem Mim nada podeis fazer.» Os discípulos de Jesus, então como agora, não farão nada mais do que continuar a missão do próprio Jesus com o mesmo princípio e estilo “missionário”: assim como Jesus nada faz a não ser o que o Pai quer, assim também os Seus discípulos nada podem e devem fazer por si mesmos, mas apenas em comunhão com o Seu Mestre Jesus e para realizar unicamente o Seu último objectivo de glorificar o Pai, dando vida à humanidade.
Nesta perspectiva, são significativos o apelo e a exortação do Papa Francisco com que podemos concluir o nosso comentário: «É Cristo, e Cristo ressuscitado, Aquele que devemos testemunhar e cuja vida devemos partilhar. Os missionários de Cristo não são enviados para comunicar-se a si mesmos, mostrar as suas qualidades e capacidades persuasivas ou os seus dotes de gestão. Em vez disso, têm a honra sublime de oferecer Cristo, por palavras e acções, anunciando a todos a Boa Nova da Sua salvação com alegria e ousadia, como os primeiros apóstolos. […] Assim, exorto todos a retomarem a coragem, a ousadia, aquela parresia dos primeiros cristãos, para testemunhar Cristo, com palavras e obras, em todos os ambientes da vida». (Mensagem para o Dia Mundial das Missões de 2022)