
1° Domingo da Quaresma (Ano B)
Gn 9, 8-15;
Sl 24;
1 Pd 3, 18-22;
Mc 1, 12-15;
Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.
COMENTÁRIO BÍBLICO-MISSIONÁRIO
As provações no caminho missionário de Cristo (e dos Seus discípulos)
Na Quarta-feira de Cinzas começámos o Tempo da Quaresma, no qual nos pomos a caminho com toda a Igreja rumo à Páscoa da Ressurreição de Cristo. Como sublinhou o Papa Francisco na sua Mensagem para a Quaresma deste ano, «a Quaresma é o tempo de graça em que o deserto volta a ser – como anuncia o profeta Oseias – o lugar do primeiro amor (cf. Os 2, 16-17). Deus educa o Seu povo, para que saia das suas escravidões e experimente a passagem da morte à vida. Como um esposo, atrai-nos novamente a Si e sussurra ao nosso coração palavras de amor». Treinemo-nos, por isso, na arte de escutar a Sua palavra, especialmente durante estas semanas, para “alcançarmos maior compreensão do mistério de Cristo e a nossa vida seja d’Ele um digno testemunho». Ora, a Palavra de Deus neste primeiro Domingo da Quaresma oferece-nos, de facto, algumas ideias importantes para conhecermos melhor Cristo e a Sua verdadeira missão, e consequentemente, para vivermos melhor a nossa vocação como cristãos, ou seja, como “discípulos de Cristo”, Seus discípulos missionários de hoje.
1. «Naquele tempo, o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto». Provações no caminho de Jesus após o baptismo
A “clássica” introdução “naquele tempo”, que encontramos nos vários leccionários, implica aqui um contexto temporal muito importante que deve ser notado e tido em mente: as tentações de Jesus no deserto têm lugar imediatamente após o Seu baptismo no Jordão. Como refere o evangelista S. Marcos, o mesmo Espírito de Deus, que tinha descido sobre Jesus anteriormente, agora condu-l’O, de facto “impele-O” para o deserto, para O manter aí durante quarenta dias, onde «era tentado por Satanás». As provações-tentações que Jesus enfrentou na vida após o Seu baptismo no rio Jordão evocam os quarenta anos que o Povo de Deus passou no deserto, após a travessia do Mar Vermelho. Durante esse tempo, Israel teve de enfrentar várias dificuldades e muitas fadigas no caminho, as quais repetidamente provocaram tentações contra a sua fé/fidelidade a Deus que salva. A história de Israel torna-se também a imagem do caminho pós-baptismal de cada crente e da sua fé, que é exposta a provações contínuas ao longo da vida.
Nesta perspectiva, os quarenta dias da Quaresma que estamos a viver são uma espécie de miniatura do nosso caminho de fé em direcção à vitória final da ressurreição. Devem, por isso, ser sempre vividos nesta perspectiva pascal, isto é, tendo em vista a Páscoa, e isto vale tanto a nível litúrgico como existencial.
A propósito das tentações de Jesus, embora os evangelistas Lucas e Mateus nos falem apenas de três tentações, que só ocorrem no final dos quarenta dias, intui-se que o número e o momento são bastante representativos. Tanto é assim que o Evangelho de Marcos sublinha o essencial: «Jesus esteve no deserto quarenta dias e era tentado por Satanás» (Mc 1, 13). Assim, após a inauguração das Suas actividades públicas com o baptismo no Jordão, Jesus enfrenta a realidade das provações-tentações ao longo de todo o percurso da Sua missão, cuja imagem emblemática é este período no deserto. Esta é a experiência comum daqueles que querem servir a Deus, cumprindo a missão divina, como vemos em Abraão, o pai da fé, e também em Adão, o primeiro homem. Não é então por acaso que o sábio do livro do Eclesiástico ensina (não sem a inspiração do Espírito): «Filho, se te apresentas para servir a Deus, / (...) prepara a tua alma para a provação» (Ecli 2, 1). Quer queiramos quer não, na vida e missão de cada discípulo de Deus há provações e tentações que vêm da “carne” (natureza humana decaída), do “mundo” (o ambiente adverso a Deus), e do Maligno (cf. 1 Jo 2, 16-17; 5, 19). Tudo isto para desviar o caminho do homem daquele que Deus lhe traçou e, em última análise, para separar o homem do Seu Deus.
2. O papel fundamental do Espírito na vida-missão cristã
Esta ênfase no acompanhamento do Espírito Santo é também importante para o caminho de cada cristão, discípulo de Cristo, particularmente neste período quaresmal. A Quaresma nunca deve ser apenas um tempo de práticas piedosas de penitência e de boas obras – éticas e/ou sociais –, mas deve também e sobretudo ser um tempo de renovação da vida no Espírito. Por outras palavras, não pensemos imediatamente nos bons propósitos (para depois nos esquecermos deles com o tempo) como um objectivo para viver frutuosamente os quarenta dias que se avizinham, mas na nossa relação pessoal com o Espírito de Deus, que cada um de nós recebeu no momento do baptismo, confirmação e, no caso de alguns, no momento da ordenação diaconal, sacerdotal ou mesmo episcopal. A Quaresma é um tempo para nos deixarmos “guiar pelo Espírito”, novamente e ainda mais intensa e intimamente, tal como aconteceu com Cristo na Sua vida e missão, particularmente durante os Seus quarenta dias no deserto. É, por isso, um tempo de alegria com Cristo no Espírito, mesmo que se tenha de enfrentar tudo o que acontece no caminho, incluindo as dificuldades, a fome, a sede e as tentações. Será, assim, um tempo de graça, de purificação, para reordenar a nossa vida e missão cristã de acordo com os ditames e inspirações do Espírito, seguindo as palavras e acções exemplares de Cristo.
A este respeito, deve ser sublinhada a importante chamada de atenção do Papa Francisco para o papel do Espírito na missão dos discípulos-missionários de Cristo:
Cada discípulo missionário de Cristo é chamado a reconhecer a importância fundamental da acção do Espírito, a viver com Ele no dia-a-dia e a receber constantemente d’Ele força e inspiração. Mais, precisamente quando nos sentirmos cansados, desmotivados, perdidos, lembremo-nos de recorrer ao Espírito Santo na oração (esta – permiti-me destacá-lo mais uma vez – tem um papel fundamental na vida missionária), para nos deixarmos restaurar e fortalecer por Ele, fonte divina inesgotável de novas energias e da alegria de partilhar com os outros a vida de Cristo. (Mensagem para o Dia Mundial das Missões de 2022)
Como o era para Cristo, o Espírito será também para nós, Seus discípulos, o guia e a força no caminho destes quarenta dias: em particular, ajudar-nos-á a compreender e, consequentemente, a realizar a verdadeira conversão cristã e missionária que Deus quer para cada um de nós na nossa situação concreta de vida e de missão.
3. «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho.» Um antigo, mas sempre novo, apelo de Jesus à verdadeira conversão evangélica
Meditámos há algumas semanas (3º Domingo do Tempo Comum) sobre este primeiro e, por isso, fundamental anúncio e convite de Jesus, no início da Sua actividade pública. Por graça de Deus, estas palavras ressoam ainda hoje no início da Quaresma, tornando-se assim um apelo programático para todo o nosso caminho quaresmal e existencial em geral. É, por isso, o apelo constante de Jesus a todos para uma verdadeira conversão evangélica. Um apelo muito antigo, mas sempre novo, sempre actual. Recordemos, pois, os pontos essenciais da reflexão feita sobre estas palavras.
Antes de mais, como se depreende do primeiro anúncio de Jesus, a conversão está intrinsecamente ligada ao crer no Evangelho, ou seja, a uma adesão total à boa nova da salvação oferecida por Deus em Jesus. Não se trata agora apenas do habitual esforço humano para afastar-se de uma vida moralmente pecaminosa, mas de um corajoso ir além dos padrões habituais de pensamento para acolher a vida nova da graça com e em Jesus. Isto é indicado precisamente na etimologia da palavra grega para conversão, “meta-noia”: meta significa depois, para além (para os gregos antigos, a física era a reflexão sistemática sobre a natureza e a metafísica a reflexão sobre a realidade que vai para além da natureza), e noia significa pensar. Por isso, metanoia significa pensar para além. Esta é agora a dimensão decisiva da conversão exigida por Jesus.
Em segundo lugar, o convite a acreditar no Evangelho implica, por um lado, a adesão às mensagens de Deus, anunciadas e realizadas por Jesus, e, por outro lado, significa também e sobretudo acreditar em Jesus que é o Cristo, o Filho de Deus. Mesmo que esta clarificação pareça a alguns um pouco difícil de seguir é, no entanto, necessária, porque é fundamental para o anúncio missionário ainda hoje. A essência do anúncio cristão continua a ser o convite conciso e premente de Jesus a todos para acreditar, isto é, para aderir com coração e mente renovados ao Evangelho, que pode ser identificado não tanto com o conjunto de princípios divinamente inspirados, mas com a própria pessoa de Jesus, anunciador, pregador e realizador do Evangelho de Deus.
Esta conversão, ligada à adesão ao Evangelho de Jesus, é agora um regresso, ou melhor, um ir além dos esquemas habituais de pensamento, um “exceder” que agrada a Deus. Ela foi o centro da missão de Jesus e depois dos Seus primeiros discípulos, e assim continuará a ser o centro da missão dos Seus fiéis seguidores, que são chamados a trabalhar sempre para a conversão de todos a Deus, a começar por eles próprios.
Por isso, não é por acaso que o evangelista São Marcos narra a vocação dos primeiros apóstolos, Pedro, André, Tiago e João, imediatamente após a pregação inaugural de Jesus. Este contexto sugere que vejamos nestes quatro as primeiras respostas positivas ao convite para converter-se ao Evangelho. Para essa conversão, também eles tiveram de deixar os seus próprios padrões de pensamento, pois está escrito que deixaram tudo e todos, incluindo “o pai”, para seguir Jesus. Normalmente, na tradição judaica, recomenda-se aos filhos que cuidem do pai e da mãe, sobretudo na velhice, de acordo com o espírito do mandamento “honra pai e mãe”. Os primeiros apóstolos, porém, deixaram todo o seu mundo para seguir Jesus na Sua missão. Trata-se, contudo, de um caminho a percorrer para chegar à plena conversão do modo de pensar e de ver, mesmo para quem tem tanta fé em Cristo, tanto amor a Cristo, como Pedro. Ele recebeu durante o seu seguimento de Jesus, uma severa advertência do Senhor que o chamou de novo à conversão, isto é, a mudar [de novo] a sua mentalidade: «Vai-te da minha frente, Satanás, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens» (Mc 8, 33). Esta advertência parece-me ainda válida para todos nós, seguidores de Cristo, neste momento. Atenção: convertei-vos e acreditai no Evangelho!
Rezemos então, no início da Quaresma, pela nossa verdadeira conversão e pela de todos, segundo o apelo sincero e premente de Jesus:
Ó Senhor, faz-nos sentir ainda e sempre mais o Teu coração totalmente tomado pelo Reino de Deus, bem como o Teu convite cordial à conversão ao Teu Evangelho de paz e amor. Ajuda-nos a viver constantemente esta conversão na nossa vida, para que possamos ser nós próprios, contigo e em Ti, o convite vivo, em palavras e actos, à conversão ao Reino para aqueles que não Te conhecem. E nesta nossa missão de sermos testemunhas de Ti e do Teu Reino, ajuda os Teus discípulos, a estarem cada vez mais unidos no Teu amor, superando as divisões existentes nas nossas Igrejas e comunidades. Que o Teu rosto brilhe sobre nós, e seremos salvos e resplandecentes com a Tua Luz para todo o mundo. Maria, Mãe de Cristo e Mãe dos Seus discípulos, rogai por nós! Amén!