3° Domingo da Páscoa (Ano B)

26 abril 2024

Act 3, 13-15.17-19;
Sal 4;
1 Jo 2, 1-5a;
Lc 24, 35-48

COMENTÁRIO BÍBLICO-MISSIONÁRIO

«Vós sois as testemunhas de todas estas coisas»

O terceiro Domingo da Páscoa do ciclo litúrgico do Ano B convida-nos a reflectir sobre o episódio da aparição do Ressuscitado aos Onze e aos outros discípulos, que teve lugar imediatamente após o encontro de Cristo com os dois no caminho de Emaús. Da Palavra de Deus escutada emergem pelo menos três aspectos importantes da missão que os discípulos são chamados a realizar. São eles: a presença consoladora e iluminadora de Cristo, apesar da confusão e das dúvidas dos discípulos; o conteúdo fundamental da pregação em Seu nome; e o papel dos discípulos como testemunhas “de todas estas coisas”. Debruçamo-nos sobre estes aspectos, tendo em conta algumas pistas sugeridas pelo ensinamento da Igreja, em particular as duas mensagens do Papa Francisco para o Dia Mundial das Missões de 2022 e 2023, com os seus respectivos temas “Sereis Minhas testemunhas” e “Corações ardentes, pés ao caminho”.

1. «Jesus apresentou-Se no meio deles». A presença consoladora e iluminadora de Cristo ressuscitado, apesar da confusão e das dúvidas dos discípulos

Tal como no caminho de Emaús, neste episódio, os discípulos continuam temerosos, confusos, perturbados e, por conseguinte, permaneceram duvidosos, mesmo diante de Jesus que, em pessoa, «Se apresentou no meio deles». Repete-se aqui, com os Onze e todos os outros discípulos que estavam com eles, a mesma experiência que ocorreu com os dois de Emaús: a presença do Ressuscitado que, com paciência e apesar de todas as indisposições e deméritos dos discípulos, lhes oferece a paz do coração e a luz do espírito, para compreenderem o plano divino revelado nas Escrituras. A propósito desta experiência única, escutemos o comentário ainda actual do Papa Francisco na sua Mensagem para o Dia Mundial das Missões 2023:

Como no início da vocação dos discípulos, também agora, no momento da frustração, o Senhor toma a iniciativa de Se aproximar dos Seus discípulos e caminhar a par deles. Na Sua grande misericórdia, Ele nunca Se cansa de estar connosco, apesar dos nossos defeitos, dúvidas, fraquezas e não obstante a tristeza e o pessimismo nos reduzam a «homens sem inteligência e lentos de espírito» (24, 25), pessoas de pouca fé.

E, por isso:

Hoje, como então, o Senhor ressuscitado está próximo dos Seus discípulos missionários e caminha a par deles, sobretudo quando se sentem frustrados, desanimados, temerosos perante o mistério da iniquidade que os rodeia e quer sufocá-los. Por isso, «não deixemos que nos roubem a esperança!» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 86). O Senhor é maior do que os nossos problemas, sobretudo quando os encontramos ao anunciar o Evangelho ao mundo, porque esta missão, afinal, é d’Ele e nós somos simplesmente os Seus humildes colaboradores, «servos inúteis» (cf. Lc 17, 10).

É a presença certa do Senhor Ressuscitado que vence todo o medo e toda a dúvida. Os discípulos são chamados a experimentar esta presença, a “tocá-la” e a entrar assim em estreita comunhão com O Vivente que come com eles. Tal presença é o tesouro divino que os discípulos deverão cuidar e guardar ciosamente na sua vida e missão cristãs, especialmente na hora das tempestades. Com e em tão doce presença, então como agora, o Senhor Ressuscitado continua a abrir-lhes «o entendimento para compreenderem as Escrituras», que são as únicas capazes, como Palavra de Deus explicada por Jesus no Espírito Santo, de dar a compreensão de tudo na história e no mundo segundo o pensamento divino. Escutemos, pois, de novo o ensinamento do Papa:

Na realidade, Jesus é a Palavra viva, a única que pode fazer arder, iluminar e transformar o coração. [...] Portanto, deixemo-nos sempre acompanhar pelo Senhor ressuscitado que nos explica o sentido das Escrituras. Deixemos que Ele faça arder o nosso coração, nos ilumine e transforme, para podermos anunciar ao mundo o Seu mistério de salvação com a força e a sabedoria que vêm do Seu Espírito.

2. «Em Seu nome o arrependimento e o perdão dos pecados a todas as nações [...]»

Depois de abrir a mente dos discípulos às Escrituras sobre a paixão, morte e ressurreição de Cristo, o Ressuscitado reitera o conteúdo fundamental da pregação universal que será confiada aos Seus: «o arrependimento e o perdão dos pecados», e isto «em Seu nome». Por isso, o próprio Apóstolo São Pedro, no final da sua primeira pregação no dia de Pentecostes, convidava aqueles que lhe perguntavam o que fazer: «Convertei-vos e seja cada um de vós baptizado no nome de Jesus Cristo, para perdão dos vossos pecados. Recebereis, então, o dom do Espírito Santo» (Act 2, 38). Era este o núcleo do anúncio que os primeiros cristãos transmitiram ao mundo por mandato do Seu Senhor e em Seu nome. É esse anúncio explícito da pessoa de Cristo, Palavra viva de Deus, morta e ressuscitada para o perdão dos pecados, que permanecerá essencial na vida e na missão de cada um dos Seus discípulos-missionários em todos os tempos. Nesta perspectiva, vale a pena recordar uma passagem da Exortação Apostólica Verbum Domini do Papa Bento XVI, que, por sua vez, faz eco do ensinamento da Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi do Papa Paulo VI:

A nossa responsabilidade não se limita a sugerir ao mundo valores que compartilhamos; mas é preciso chegar ao anúncio explícito da Palavra de Deus. Só assim seremos fiéis ao mandato de Cristo: «Por conseguinte a Boa Nova proclamada pelo testemunho de vida deverá, mais cedo ou mais tarde, ser anunciada pela palavra de vida. Não há verdadeira evangelização, se o nome, a doutrina, a vida, as promessas, o Reino, o mistério de Jesus de Nazaré, Filho de Deus, não forem proclamados» (Evangelii nuntiandi, 22). (Verbum domini, 98).

3. «[...] Vós sois as testemunhas de todas estas coisas»

Por fim, depois de ter indicado aos discípulos a essência da sua pregação a todos os povos, o Senhor ressuscitado sublinhou a sua vocação a serem testemunhas «de todas estas coisas», isto é, de todo o mistério da vida, morte e ressurreição de Cristo, anunciado nas divinas Escrituras, como Ele mesmo recomendou aos discípulos antes da Ascensão: «Sereis Minhas testemunhas» (Act 1, 8). Para além da ênfase com o sujeito no plural sobre o carácter comunitário do testemunho de Jesus, podemos vislumbrar aqui uma subtil evocação de uma verdade fundamental que é preciso ter sempre presente: a pregação cristã anda necessariamente de mãos dadas com o testemunho de vida, e vice-versa, o testemunho cristão faz-se com o anúncio. Por outras palavras, para os discípulos-missionários, anunciar Cristo é viver Cristo. A este respeito, voltemos a reflectir sobre o importante ensinamento do Papa Francisco na sua Mensagem para o Dia Mundial das Missões 2022, com o tema “Sereis Minhas testemunhas”:

Enfim, a propósito do testemunho cristão, permanece sempre válida esta observação de São Paulo VI: «O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres (…) ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas» (Evangelii nuntiandi, 41). Por conseguinte é fundamental, para a transmissão da fé, o testemunho de vida evangélica dos cristãos. Por outro lado, continua igualmente necessária a tarefa de anunciar a pessoa de Jesus e a Sua mensagem. De facto, o mesmo Paulo VI continua mais adiante: «Sim! A pregação, a proclamação verbal duma mensagem, permanece sempre como algo indispensável. (...) A palavra continua a ser sempre actual, sobretudo quando ela for portadora da força divina. É por este motivo que permanece também com actualidade o axioma de São Paulo: “A fé vem da pregação” (Rom 10, 17). É a Palavra ouvida que leva a acreditar» (Ibid., 42).

Por isso, na evangelização, caminham juntos o exemplo de vida cristã e o anúncio de Cristo. Um serve ao outro. São os dois pulmões com que deve respirar cada comunidade para ser missionária. Este testemunho completo, coerente e jubiloso de Cristo será seguramente a força de atracção para o crescimento da Igreja também no terceiro milénio. Assim, exorto todos a retomarem a coragem, a ousadia, aquela parresia dos primeiros cristãos, para testemunhar Cristo, com palavras e obras, em todos os ambientes da vida.

Rezemos, pois, para que o Senhor ressuscitado nos faça experimentar sempre a Sua doce presença entre nós e nos fortaleça com o Seu Espírito na fé e na compreensão das Escrituras, a fim de vivermos com renovado zelo a nossa vocação de sermos Suas testemunhas, pelo exemplo da nossa vida e pelo anúncio explícito de Cristo, no meio de todos os povos, até ao fim do mundo. Amén.

 

Citações úteis:

Catecismo da Igreja Católica

II. O poder das chaves

981 Depois da ressurreição, Cristo enviou os seus Apóstolos «a anunciar a todos os povos o arrependimento em seu nome, com vista à remissão dos pecados» (Lc 24, 47). Este «ministério da reconciliação» (2 Cor 5, 18), não o cumprem os Apóstolos e os seus sucessores somente anunciando aos homens o perdão de Deus que nos foi merecido por Jesus Cristo, e chamando-os à conversão e à fé; mas também comunicando-lhes a remissão dos pecados pelo Baptismo e reconciliando-os com Deus e com a Igreja, graças ao poder das chaves recebido de Cristo:

A Igreja «recebeu as chaves do Reino dos céus, para que nela se faça a remissão dos pecados pelo Sangue de Cristo e a acção do Espírito Santo. É nesta Igreja que a alma, morta pelos pecados, recupera a vida para viver com Cristo, cuja graça nos salvou».

III. Os sacramentos da fé

1122 Cristo enviou os Apóstolos para que, «em seu nome, pregassem a todas as nações a conversão para o perdão dos pecados» (Lc 24, 47). «Fazei discípulos de todas as nações, baptizai-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo» (Mt 28, 19). A missão de baptizar, portanto a missão sacramental, está implicada na missão de evangelizar; porque o sacramento é preparado pela Palavra de Deus e pela fé, que é assentimento à dita Palavra:

«O povo de Deus é reunido, antes de mais, pela Palavra de Deus vivo [...]. A pregação da Palavra é necessária para o próprio ministério dos sacramentos, enquanto são sacramentos da fé, que nasce e se alimenta da Palavra»

Papa Francisco, Regina Caeli, Praça São Pedro, Domingo, 18 de abril de 2021

Neste terceiro domingo de Páscoa, voltamos a Jerusalém, ao Cenáculo, como que guiados pelos dois discípulos de Emaús, que tinham ouvido com grande emoção as palavras de Jesus ao longo do caminho e depois o reconheceram «ao partir o pão» (Lc 24, 35). Agora, no Cenáculo, Cristo ressuscitado apresenta-se no meio do grupo de discípulos, saudando-os: «A paz esteja convosco!» (v. 36). Mas eles, assustados e perturbados, pensaram que «viam um espírito», assim diz o Evangelho (v. 37). Então Jesus mostra-lhes as feridas do seu corpo e diz: «Vede as minhas mãos e os meus pés – as chagas – sou eu mesmo; palpai-Me e vede» (v. 39). E para os convencer, pede comida e come-a sob os seus olhares atónitos (cf. vv. 41-42).

Há aqui um detalhe nesta descrição. O Evangelho diz que os Apóstolos, «vacilando eles ainda e estando transportados de alegria», não acreditavam. Tal era a alegria que sentiam, que não podiam acreditar que o que viam era verdadeiro. E um segundo detalhe: ficaram estupefactos, surpreendidos; admirados pois o encontro com Deus leva sempre à admiração: vai além do entusiasmo, além da alegria, é outra experiência. E eles rejubilaram, mas um júbilo que os fez pensar: não, isto não pode ser verdade!... É o espanto da presença de Deus. […]

Irmãos e irmãs, esta página do Evangelho diz-nos que Jesus não é um “fantasma”, mas uma Pessoa viva; que quando Jesus se aproxima de nós enche-nos de alegria, a ponto de não acreditar, e deixa-nos estupefactos, com aquele espanto que só a presença de Deus dá, porque Jesus é uma Pessoa viva. Antes de tudo, ser cristão não é uma doutrina ou um ideal moral, é a relação viva com Ele, com o Senhor Ressuscitado: vemo-Lo, palmamo-Lo, alimentamo-nos d’Ele e, transformados pelo seu Amor, vemos, palpamos e alimentamos os outros como irmãos e irmãs.

Bento XVI, Regina Cæli, Domingo, 22 de abril de 2012

Visto que a ressurreição não cancela os sinais da crucifixão, Jesus mostra aos Apóstolos as mãos e os pés. E para os convencer, pede até algo para comer. Então os discípulos «deram-lhe um bocado de peixe assado; e, tomando-o, comeu diante deles» (Lc 24, 42-43). São Gregório Magno comenta que «o peixe assado nada mais é do que a paixão de Jesus, Mediador entre Deus e os homens. Com efeito, Ele dignou-se esconder-se nas águas do género humano, aceitou ser apertado com o laço estreito da nossa morte e foi como que posto no fogo pelas dores que sofreu no momento da paixão» (Hom. in Evang. XXIV, 5: CCL 141, Turnhout 1999, pág. 201).

Graças a estes sinais muito realísticos, os discípulos superam a dúvida inicial e abram-se ao dom da fé; e esta fé permite-lhes compreender as coisas escritas sobre Cristo «na lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos» (Lc 24, 44). Com efeito, lemos que Jesus «abriu-lhes então o entendimento para compreenderem as Escrituras e disse-lhes: “Assim está escrito, que o Messias havia de sofrer e ressuscitar dentre os mortos, ao terceiro dia; que havia de ser anunciada, em seu nome, a conversão para o perdão dos pecados...! Vós sois as testemunhas destas coisas (Lc 24, 45-48). O Salvador garante-nos a sua presença real entre nós, por meio da Palavra e da Eucaristia. Por conseguinte, assim como os discípulos de Emaús reconheceram Jesus ao partir o pão (cf. Lc 24, 35), também nós encontramos o Senhor na Celebração eucarística. Explica, a este propósito, são Tomás de Aquino que «é necessário reconhecer segundo a fé católica, que Cristo está inteiramente presente neste Sacramento,... porque a divindade deixou o corpo que adquiriu» (S. Tomás, III, q. 76, a. 1).