
3° Domingo da Quaresma (Ano B)
Ex 20, 1-17;
Sal 18;
1 Cor 1, 22-25;
Jo 2, 13-25
COMENTÁRIO BÍBLICO-MISSIONÁRIO
O Evangelho deste terceiro Domingo da Quaresma convida-nos a reflectir sobre um episódio-chave da vida de Jesus, que alude ao mistério do Seu sacrifício supremo na cruz. Trata-se da chamada expulsão dos mercadores do templo de Jerusalém por Jesus. No Evangelho de João, este acontecimento é narrado no contexto significativo da primeira Páscoa de Jesus no Templo, depois do Seu primeiro sinal em Caná da Galileia, onde «manifestou a Sua glória, e os discípulos acreditaram n’Ele» (Jo 2, 11). Jesus «desceu a Cafarnaum» (com os discípulos, cf. Jo 2, 12). Para além da diferença entre os evangelistas quanto ao momento em que o episódio ocorre (no início da vida pública de Jesus, como aqui em João, ou no final, antes da Sua paixão, como nos sinópticos Mt, Mc e Lc), estes múltiplos testemunhos das várias tradições afirmam a fiabilidade histórica do episódio na vida de Jesus e, por outro lado, sublinham a importância teológica do relato nos Evangelhos: o que acontece agora tem uma ligação directa e inseparável com a posterior crucificação de Jesus. É precisamente nesta perspectiva da Cruz que devemos meditar a passagem!
Também aqui, como tantas vezes no nosso caminho com a Palavra de Deus, é preciso uma scrutatio, uma lectio divina, uma contemplação de cada pormenor do trecho evangélico, que está bem estruturado em três momentos de acção-discussão-conclusão, para acolher em profundidade o que o Espírito quer dizer a cada um de nós hoje.
1. A cena: uma acção profética de Jesus
Vemos em primeiro lugar um Jesus fora do comum, com uma acção muito veemente que se assemelha àquelas realizadas muitas vezes pelos profetas de Israel. Trata-se de uma acção-sinal para transmitir uma mensagem divina (vv. 14-17). Por outras palavras, com o Seu gesto, não pensamos que Jesus quisesse resolver de uma vez por todas o problema da presença dos mercadores no Templo, porque, muito provavelmente, Ele estava bem consciente do facto de que eles, embora expulsos por Jesus naquele momento, voltariam certamente o dia depois, quando Ele não estivesse lá, para continuarem os negócios do costume (segundo o ditado inglês business as usual!). Jesus quis transmitir, através desta acção pouco suave, um ensinamento forte e fundamental a todos os presentes, especialmente aos Seus discípulos.
Tudo começa no momento em que Ele «encontrou no templo» os vários comerciantes. É de notar que o evangelista fala aqui literalmente do recinto do templo (ieros) (também no v. 15), distinto do “templo (propriamente dito)” ou do “templo-santuário” – naos nos vv. 19.20.21. Ou seja, trata-se da parte exterior ao Templo, e o episódio talvez se tenha passado na parte chamada Pátio dos Gentios, onde até os pagãos podiam entrar e onde havia muita confusão, sobretudo durante a Páscoa. Foi aqui, como sabemos pelas fontes históricas, que o sumo sacerdote Caifás organizou, em 30 d.C., um mercado para a compra de animais do sacrifício (bois, ovelhas, pombas...) e mesas de câmbio para servir os peregrinos. (O Sinédrio tinha instalações semelhantes no sopé do monte do Templo, no vale de Cedron!). Tudo isto, porém, não era tão flagrantemente contrário à santidade do próprio santuário. Pelo contrário, estava sempre ao serviço do povo. (A este respeito, alguém pode pensar nos nossos santuários modernos! Trata-se do eterno problema de discernimento entre “o demónio e a água benta”. Pensemos no templo-santuário do nosso corpo, do nosso hieros-naos! Há caos? Talvez pareça estar tudo em ordem, mas na realidade nada está em ordem segundo Deus! Em todo o caso, convida sempre Jesus a entrar para pôr as coisas no teu templo de acordo com a ordem divina).
Perante tal situação, Jesus fez «um chicote de cordas e expulsou-os» (os comerciantes e os seus animais). A vivacidade dos pormenores sugere que por detrás das palavras escritas há uma testemunha ocular. Não havia paus ou outros instrumentos mais pesados (como espingardas!), porque eram proibidos naquele lugar. (Curiosamente, é de notar um tratamento mais ligeiro em relação às pombas e aos seus vendedores. Talvez nestas pombas Ele tenha visto a imagem do Espírito Santo! Isto é, obviamente, uma ironia!) Mas, como já foi dito, o objectivo de Jesus não era, aparentemente, nem castigar os vendedores, nem destruir as suas mercadorias, para que não pudessem retomar a sua actividade. Tudo isto conduz à exortação que esclarece o verdadeiro sentido da acção-missão de Jesus: «não façais da casa de Meu Pai casa de comércio.» É esta a mensagem da acção simbólico-profética de Jesus, que alude aos actos e às palavras de Jeremias, cinco séculos antes (ler Jr 7, 1-11: “covil de ladrões”). Além disso, ao contrário de Jeremias, a frase de Jesus não é apenas um convite ao verdadeiro respeito-adoração pelo Santuário, mas contém também a primeira auto-revelação da filiação divina («meu Pai»); pensemos nas palavras do adolescente Jesus aos Seus pais, também no Templo: «Não sabíeis que é necessário que Eu esteja na casa de Meu Pai?» (Lc 2, 49).
Vendo e ouvindo tudo isto, como nota o evangelista, «os discípulos recordaram-se do que estava escrito: “Devora-me o zelo pela Tua casa”». Trata-se de um comentário “pessoal” do evangelista sobre o acontecimento, que se refere à citação do Sal 69,10, mas mudando o tempo do verbo, que no salmo está no presente («devora-me») e aqui no futuro (ver Sal 69, 8-13). A frase refere-se, portanto, não tanto ao que acabou de acontecer, mas a tudo o que está para vir na vida de Jesus. É, portanto, o lema da Sua vida: «Eis que venho para fazer a Tua vontade, com todo o zelo do coração, da alma e do corpo» (cf. Sal 40,8-9). É o zelo “pela Tua casa”, pelo Santuário divino, pela morada de Deus entre os homens, em suma, pelas “coisas” de Deus. (Se era assim para Jesus, podemos agora naturalmente perguntar a cada um dos seus discípulos-missionários: “Qual é o teu lema de vida? Como está o teu zelo pelas coisas de Deus?” Ver Is 62, 1; Sal 132, 3-5; 137, 5-6).
2. A disputa: uma palavra profética
A reacção dos “judeus” foi muito diferente da dos discípulos de Jesus. Eles perguntam a Jesus, talvez com alguma ira: «Que sinal nos dás?» Esta é a pergunta “clássica” para reconhecer a autoridade que vem de Deus (cf. Jo 6, 30), como vemos também nos evangelhos sinópticos (cf. Mt 12, 38s; 16, 1s; Mc 8, 11s; Lc 11, 16s). Lá como aqui em Jo, Jesus recusa o pedido, mas alude ao sinal da ressurreição. De facto, Ele responde com a afirmação-chave, ponto culminante e centro de tudo o que aconteceu: «Destruí este templo e em três dias o levantarei.» Nesta frase, é belo (intencional?) o verbo de duplo matiz “levantarei” (ou “erguerei”) que indica simultaneamente a reconstrução de um edifício e a ressurreição (cf. v. 22!). Aqui temos a habitual ambiguidade joanina e daí a incompreensão dos judeus (ironia de Jo) e a explicação do evangelista («porém, falava do templo do Seu corpo»). O imperativo “destruí” reflecte a linguagem semítica; implica uma condicional “se destruíres”, ou melhor, uma afirmação de facto “estais a destruir” ou “continuais a destruir”. A expressão «em três dias» não quer necessariamente indicar um tempo exacto, mas simplesmente um curto período de tempo (cf. Os 6, 2).
3. Conclusão: a memória pela fé e o epílogo
O relato evangélico termina com uma nota importante a respeito da chamada “santa recordação” dos discípulos de Jesus, mencionada anteriormente na passagem. Agora, porém, especifica-se claramente que a recordação teve lugar depois da ressurreição de Jesus, portanto sob a acção do Espírito: «lembraram-se do que tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra de Jesus.» A última expressão lembra a reacção dos discípulos em Caná (acreditaram n’Ele; Jo 2,11), mas aqui é muito original, porque coloca em paralelo a Escritura e a palavra (no singular!) de Jesus em que os discípulos acreditaram.
Mas a que é que se refere aqui a fé? Qual é o seu conteúdo? Trata-se, antes de mais, de acreditar no anúncio profético de Jesus sobre o Templo: “em três dias o levantarei”. Isso aconteceu com a ressurreição do Templo do Seu corpo, precisamente de acordo com a Escritura e com o que Ele disse. Além disso, a fé está implícita no facto de que agora o Templo já não é o Templo material de Jerusalém, mas o corpo de Jesus, morto (ou seja, destruído) e ressuscitado (ou seja, reconstruído). Inaugura-se assim a verdadeira “casa do Pai”, que é Jesus, por quem, com quem e em quem se eleva o louvor que Lhe é agradável (per ipsum, cum ipso et in ipso!). Também tu então acreditas (na Escritura e nas palavras de Jesus)? Sentes-te consumido pelo zelo por esta “casa do Pai” que é o Corpo de Jesus morto e ressuscitado? Por conseguinte, também tu és apaixonado pela Escritura e pelas palavras de Jesus em que acreditas? Como está a tua fé em Jesus?
A esta luz, até o que é mencionado no epílogo após o acontecimento pode servir para a purificação da nossa fé em Jesus. Com efeito, fala-se do fenómeno da fé de muitos em Jesus, baseada na visão dos sinais. Jesus não confia nessa fé! O que é preciso é uma fé madura, mais profunda, mais enraizada também e sobretudo na Palavra de Deus, nas Escrituras, e em tudo o que Jesus ensinou com a autoridade do Filho. Afinal de contas, já ouvimos a voz de Deus no monte da transfiguração: Escutai-O! Por isso, devemos também renovar o nosso compromisso de escutar atentamente as Escrituras e as palavras de Jesus Cristo, sabedoria e poder de Deus, para que nós próprios, seus discípulos-missionários, possamos transmitir aos outros, com zelo e fidelidade, tudo o que Ele nos ensinou para continuarmos a Sua missão evangelizadora no mundo inteiro. Assim seja. Amén.