Domingo de Ramos na Paixão do Senhor (Ano B)
Procissão de Ramos: Mc 11, 1-10 ou Jo 12, 12-16
Missa:
Is 50, 4-7;
Sl 21;
Flp 2, 6-11;
Mc 14, 1-15, 47
COMENTÁRIO BÍBLICO-MISSIONÁRIO
O coração da missão divina
O Domingo de Ramos é também chamado Domingo da Paixão do Senhor porque «duas antigas tradições moldam esta celebração litúrgica, única no seu género: o costume de uma procissão em Jerusalém e a leitura da Paixão em Roma» (Directório Homilético, 77). Por isso, o documento eclesiástico continua dizendo, «a exuberância em torno da entrada real de Cristo [em Jerusalém] dá imediatamente lugar a um dos Cânticos do Servo sofredor e à solene proclamação da Paixão do Senhor.» Deste modo, entramos imediatamente na atmosfera da Semana Santa, dos acontecimentos da última semana de Jesus em Jerusalém, a qual se revelou o ápice da Sua vida terrena e o coração da Sua missão divina.
A este respeito, como sublinha ainda o documento acima citado, «nas celebrações litúrgicas da Semana que está a começar, não nos limitamos à mera comemoração do que Jesus fez; somos imersos no mesmo Mistério Pascal, para morrer e ressuscitar com Cristo.» Por outras palavras, não é uma simples recordação do que aconteceu no passado, mas uma actuação do mistério da paixão, morte e ressurreição de Jesus para nós no presente. Somos convidados a reviver estes eventos, a participar neles, mais ainda, a morrer para nós próprios para termos uma nova vida em Cristo e em Deus. É, por isso, essencial uma escuta atenta e dócil da Palavra de Deus, que nos fala abundantemente hoje e nos próximos dias nas leituras e também nas várias orações litúrgicas. Precisamos também de uma atitude de recolhimento e meditação pessoal sobre o que ouvimos, a fim de entrarmos nas profundezas do mistério que está a ser celebrado.
A Paixão de Jesus (sofredor, morto, ressuscitado) foi o centro do anúncio dos primeiros cristãos, porque é, de facto o coração da Sua missão divina. Tanto é assim que o Evangelho foi graciosamente chamado “um relato da Paixão com uma longa introdução”. Nela se cumpriu a missão que Deus confiou ao Seu Filho, enviando-O ao mundo. Dela parte a missão que Jesus agora confia aos Seus discípulos: «Tal como o Pai Me enviou, também Eu vos envio» (Jo 20, 21), diz Cristo ressuscitado aos Seus discípulos.
A riqueza espiritual da Paixão de Jesus é imensa para a vida e missão cristãs. O que vou partilhar sobre estes dias santos serão apenas algumas notas introdutórios para convidar cada ouvinte/leitor a um maior aprofundamento e reflexão pessoal. Neste Domingo de Ramos, contemplamos três figuras “anónimas” no Evangelho que precede a procissão das palmas e a narração da paixão segundo o evangelista Marcos: o jumentinho, a mulher que unge Jesus e o jovem que foge quando Jesus é preso. Estas figuras, mencionadas quase de passagem, são muito fascinantes e altamente formativas para a nossa vivência mística com Jesus nesta Semana Santa, o ponto culminante da nossa redenção.
1. O potro de Jesus
Para a Sua entrada triunfal em Jerusalém como rei-messias, Jesus quis montar um potro. Poderia perguntar-se porque não um cavalo para sublinhar o carácter real vitorioso e poderoso? A resposta vem da própria Sagrada Escritura. Ainda que S. Marcos não comente este facto, o Evangelho de Mateus explica, «Isto aconteceu para que se cumprisse o que foi dito por meio do profeta que diz: Dizei à filha de Sião: “Eis que o teu rei vem ao teu encontro, manso e montado numa jumenta e num jumentinho, filho de um animal de carga”» (Mt 21, 4-5; cf. Zc 9, 9). O mesmo se passa com São João Evangelista, que, depois de citar o texto bíblico mencionado, sublinha: «Ao princípio, os Seus discípulos não compreenderam isto, mas, quando Jesus foi glorificado, então recordaram-se de que isto estava escrito acerca d’Ele e que foi isto o que Lhe fizeram» (Jo 12, 16).
A escolha de Jesus pretende, portanto, salientar o cumprimento da era messiânica predita e, ao mesmo tempo, destacar a mansidão e não o poder como o Seu carácter distintivo no cumprimento do plano divino. A Sua vitória nunca será a do domínio violento que aniquila os inimigos, mas a do amor manso e misericordioso que a todos eleva a uma nova vida em Deus.
Por outro lado, parece que se o cavalo é um animal associado ao tempo da guerra, o jumento/potro é um animal da vida quotidiana e do tempo de paz. Assim, a imagem de Jesus no potro assinala outra característica fundamental da nova era messiânica que Ele agora estabelece: a paz, esse Shalom hebraico, que significa não só a ausência de guerra, mas também e sobretudo a vida em plena harmonia com Deus, de quem provém toda a felicidade, bem-estar e prosperidade. Tanto é verdade que, como observa o evangelista Lucas, a multidão que acompanhava Jesus aclamou «Bendito o Rei que vem em nome do Senhor. Paz no Céu e glória nas alturas!» (Lc 19, 38).
A missão de Jesus é, portanto, a que Deus declarou através do profeta Jeremias: «Conheço bem os pensamentos que tenho a vosso respeito, diz o Senhor; pensamentos de paz, e não de mal, para vos dar o fim que esperais» (Jr 29, 11). É por isso que, quando Jesus enviou os Seus discípulos, recomendou-lhes que a sua saudação fosse «Paz a esta casa!» (Lc 10, 5). Cristo ressuscitado saudou os Seus precisamente assim: «A paz esteja convosco!»
2. A mulher da unção
Nesta missão de paz de Jesus, que atinge agora o seu auge, nos Seus últimos dias na terra, no dom total de Si mesmo na morte, uma mulher misteriosa e sem nome acompanha-O com um acto espontâneo, mas significativo, o de ungir a Sua cabeça antes da Sua paixão. O que a mulher fez (ela, aliás, nunca falou!) revelou-se tão importante para o próprio Jesus que mereceu não só a Sua defesa («Deixai-a. Porque estais a importuná-la? Ela fez uma boa acção para comigo. […] Ela fez o que estava ao seu alcance: ungiu de antemão o Meu corpo para a sepultura»), mas também “mereceu” uma declaração de Jesus verdadeiramente sem paralelo para uma personagem do Evangelho: «Em verdade vos digo: Onde quer que se proclamar o Evangelho, pelo mundo inteiro, dir-se-á também em sua memória o que ela fez». “Em sua memória” (εἰς μνημόσυνον αὐτῆς - eis mnemosynon autes), de certa forma, lembra a recomendação de Jesus aos discípulos para a celebração da Eucaristia: “Fazei isto em memória de Mim!” (εἰς τὴν ἐμὴν ἀνάμνησιν – eis ten men anamnesis). Não é por acaso que o conhecido biblista francês Légasse escreveu no seu comentário: «[Esta recordação da mulher] Não se trata de uma simples reminiscência de um acontecimento passado: o termo mnemosynon, como o hebraico ziqqaron de que na Septuaginta [versão grega do Antigo Testamento] é frequentemente a tradução, ou como anamnèsis, envolve o presente da comunidade que recorda o que foi bom e permanece assim para ela.» Note-se ainda com o mesmo autor que «aqui esta recordação tem por objecto não as acções ou as palavras de Jesus, mas, excepcionalmente, a acção de uma mulher cujo nome nem sequer foi conservado.»
Entre os pormenores significativos da história, há um que me chamou particularmente a atenção: ela «partiu o vaso de alabastro e derramou-o sobre a cabeça de Jesus». O acto decisivo de partir o vaso é eloquente, porque não era de modo algum necessário fazê-lo para derramar o conteúdo, mas deixa entrever a intenção da mulher de usar o vaso exclusivamente para Jesus. Assim, com o precioso e caro perfume que contém (mais de 300 denários, quase o salário de um ano de trabalho), o vaso quebrado para Jesus torna-se símbolo da própria vida da mulher que se oferece totalmente ao Mestre no mistério da Sua paixão e morte.
Muito poderia ainda ser dito sobre este episódio evangélico, mas, por falta de tempo, deixo aos leitores a tarefa de meditar durante esta Semana sobre cada pormenor da história, para depois serem inspirados pela Palavra de Deus a agir generosamente, como a própria mulher, para com Jesus na Sua paixão. Como Jesus reconheceu, ela fez o que pôde, oferecendo tudo o que tinha, independentemente do preço, para acompanhar Jesus na Sua paixão. E nós, seus discípulos de hoje, estamos dispostos a fazer o que realmente podemos por Jesus? As mulheres, como esta e também a viúva anónima das duas moedas no templo, ofereceram ao Senhor todo o pouco que tinham, deixando um testemunho de fé e de amor que se espalhou pelo mundo e até ao fim dos tempos. Assim, a tradição bizantina escreveu uma bela antífona sobre a acção da mulher da unção, mais tarde chamada Maria pela tradição, que vale a pena citar: “Quando Maria quebra o vaso, toda a casa se enche de perfume, todo o mundo se enche do Evangelho e todo o universo da graça salvadora de Deus.”
3. O rapaz que foge “nus”
Terminemos a nossa reflexão com algumas palavras sobre o misterioso jovem que foge quando Jesus é preso. Entre os evangelistas, só São Marcos menciona esta figura e, portanto, conhece o facto. Este facto leva muitos, na longa tradição da Igreja, a pensar que se trata talvez do próprio São Marcos. Sem julgar esta hipótese, queremos apenas sublinhar o significado espiritual que se esconde por detrás deste acontecimento. Ironicamente, como diz o famoso biblista americano R. Brown, se no início do Seu ministério público, Jesus chamou os Seus discípulos e eles deixaram tudo para O seguir, agora, no momento decisivo da missão, todos os Seus discípulos fugiram d’Ele; de facto, alguns estavam mesmo dispostos a deixar tudo para trás, a fim de escapar “nus”! Talvez tenhamos de nos interrogar se aquele jovem não será por vezes um de nós, tu ou eu: para não “perdermos” a nossa vida, deixamos Jesus sozinho e a nossa veste de fé n’Ele.
Continuemos a nossa celebração e procuremos seguir Jesus Mestre e Senhor também esta semana, com a generosidade renovada da mulher e o zelo do verdadeiro discípulo que não foge perante as dificuldades, de modo a continuar a Sua missão de paz. Ele, o verdadeiro pacificador, proclamou bem-aventurados os Seus discípulos que promovem a paz, a paz divina genuína que vem de um coração reconciliado com Deus (cf. Mt 5, 9). E para fazer a paz, Jesus, o rei-messias, sacrificou-Se a Si mesmo, para que todos pudessem viver em Deus. Num mundo ainda dilacerado por conflitos e guerras insensatas para afirmar o próprio domínio, talvez tenha chegado o momento, também para os discípulos de Jesus, de proclamar de um modo ainda mais forte e convincente, Cristo como “a nossa paz”. Aliás, Ele continua a ser sempre a nossa única e genuína paz que deve ser partilhada com todos. Uma paz duradoura, fruto da missão de Cristo que continua nos Seus discípulos missionários e que ainda se realiza misticamente nesta Semana Santa da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.